Dissertação de Mestrado sobre Campesinato e produção de leite orgânico - Interessante o trabalho, vale conferir!

CAMPESINATO E PRODUÇÃO DE LEITE EM PRV
Francis V. N. L. Guedes
Henrique do Prado Samsonas
Resumo
O desenvolvimento do capital se faz no sentido do aumento da produtividade e da concentração da produção, o que acontece de variadas formas, de acordo com as condições históricas e materiais. No campo brasileiro, com a aliança entre a oligarquia agrária e a burguesia industrial, o Estado subsidiou a modernização e a expansão do latifúndio, com desenfreada apropriação de terras, subjugação e expulsão de camponeses. Em diversos locais do Brasil, o campesinato continua seu processo de resistência econômica e social, em busca de sobrevivência e melhores condições materiais de existência. A bovinocultura de leite é uma linha de produção comumente praticada pelos camponeses e outros agricultores familiares, permanecendo, ao longo do tempo, alocada em pequenos e médios estabelecimentos. A produção de leite, por aspectos ligados ao funcionamento do trabalho, ao autoconsumo e à renda, tem importância central nos mecanismos de resistência do campesinato. A agroecologia e a cooperação podem ser a sustentação para uma maior autonomia do campesinato, mediante elevação da eficiência econômica e produtiva e do fortalecimento da atuação sociopolítica. O PRV é uma tecnologia agroecológica para a produção de leite e um instrumento de fortalecimento de seu papel na unidade camponesa, mediante ganhos econômicos e aumento da fertilidade do solo.  
Palavras-chave: Leite, campesinato, capitalismo, agroecologia, PRV.


1. INTRODUÇÃO
            O desenvolvimento do capital se faz, como tendência geral, no sentido do aumento da produtividade e da concentração da produção (MARX, 1985). A expressão dessa tendência, contudo, acontece de variadas formas, dadas as condições históricas e materiais presentes em cada momento e lugar (GUZMÁN, 2005; WANDERLEY, 1985).
No Brasil, calcando-se na aliança entre a oligarquia agrária e a burguesia industrial, o Estado subsidiou a modernização e a expansão do latifúndio, ocorrendo uma desenfreada apropriação de terras, aliada à subjugação e à expulsão de camponeses (PRADO, 1999). Assim, não houve Reforma Agrária, mantendo-se uma estrutura fundiária enormemente concentrada, com a geração de massivo êxodo rural e uma urbanização de caráter social danoso, com a formação das favelas pelos enormes contingentes populacionais migrantes que se aglomeraram nas médias e grandes cidades (SILVA, 2003; STEDILE, 2011; MACHADO, 2014). Nesse contexto, em diversos estados e regiões do Brasil, o campesinato continua seu processo de resistência econômica e social, reproduzindo-se e fragmentando-se, em busca de garantia de sobrevivência e melhores condições materiais de existência (CARVALHO, 2005b).
            A bovinocultura de leite está entre as linhas de produção mais comumente praticadas pelos camponeses e demais agricultores familiares. O leite é um produto que apresenta uma série de particularidades, relacionadas à sua obtenção, manipulação, perecibilidade, armazenamento, às possibilidades de transformação e a todo o processo de produção, beneficiamento e comercialização. Algumas delas estão relacionadas às especificidades da concentração da produção de leite, em relação às demais linhas produtivas.
Devido a características vinculadas à produção, à alimentação e à renda, a produção de leite tem importância central nos mecanismos de resistência do campesinato. Essa realidade pode ser observada, tanto no Brasil, quanto em outras partes do mundo, em especial, a Europa. A organização familiar e as possibilidades de intensificação e qualificação fazem com que o funcionamento do trabalho nas unidades camponesas[1] seja adequado à produção de leite, sendo possível, inclusive, identificar vantagens econômicas em relação às formas de produção que se baseiam na especialização e intensificação convencionais. A cooperação e a agroecologia, com destaque para o Pastoreio Racional Voisin (PRV), se utilizados pelos camponeses, podem potencializar essa resistência e viabilizar o seu desenvolvimento socioeconômico e político.

2. REFERENCIAL TEÓRICO
            Os clássicos marxistas que tratam do desenvolvimento do capitalismo na agricultura fornecem elementos de base teórica para o presente estudo, tendo-se em mente que diversas das características apontadas e analisadas pelos autores, para as diferentes vias de desenvolvimento, mesclam-se e estão presentes no caso brasileiro em diferentes graus, regiões e momentos históricos. Assim, a expulsão massiva de camponeses da terra, característica fundamental da “Via Inglesa” (MARX, 1985); a permanente extinção e recriação de unidades de produção camponesa, da “Via Prussiana” (KAUTSKY, 1986); e a tecnificação da produção agropecuária como forma de acumulação, presente, de distintas formas, na “Via Junker” (LENIN, 1988) e na “Via Farmer” (LENIN, 1980), são expressões do desenvolvimento capitalista na agricultura que podem ser observadas na história do Brasil.
            Também compõe o referencial teórico o estudo do desenvolvimento capitalista na agricultura brasileira, da década de 60 do século passado em diante. Apoiada na manutenção de uma estrutura fundiária enormemente concentrada, a modernização se deu com o uso do crédito rural estatal, modernizando parcialmente o latifúndio, sua expansão e improdutividade, utilizando-se da expulsão massiva de camponeses, resultando em migrações e êxodo rural (SILVA, 1982; 2003; SORJ, 1980; WANDERLEY, 1985; PRADO, 1999; STEDILE, 2011). O agronegócio[2] é a expressão do latifúndio no período neoliberal.
            Os trabalhos de análise da história e das características dos camponeses também compõem o referencial teórico, lançando à luz as consequências do movimento do capital sobre a estrutura social agrária e o campesinato (WANDERLEY, 1985, 1996; CARVALHO, 2005a, 2005b, 2012a, 2012, entre muitos outros; GUZMÁN, 2005; PLOEG, 2008; COSTA, s/d). As famílias camponesas são aquelas que, "tendo acesso à terra e aos recursos naturais que esta suporta, resolvem seus problemas reprodutivos a partir da produção rural - extrativista, agrícola, não agrícola, pesqueira e de parte dos povos indígenas - desenvolvida de tal modo que não se diferencia o universo dos que decidem sobre a alocação do trabalho, dos que sobrevivem do resultado dessa alocação" (CARVALHO, 2005b, p. 89).
O campesinato esteve presente em diferentes modos de produção e em diversas formações socioeconômicas, sendo possível identifica-lo “como uma categoria integrada a um específico modo de uso dos recursos naturais [...] uma forma de se relacionar com a natureza ao se considerar como parte dela num processo de coevolução" (GUZMÁN, 2005, p. 80-81).
            Um traço constituinte do campesinato é a sua autonomia relativa, a qual ele se esforça, constantemente, para aumentar e que é dada pelo controle sobre os meios e processos de produção, orientado para a sobrevivência imediata e a reprodução geracional. Para tanto, constituem sistemas de produção específicos, baseados na policultura-pecuária e na dupla preocupação autoconsumo e mercado centrando-se na constituição do patrimônio familiar.  Mas a necessidade de estabelecer relações mercantis leva aos laços de dependência, à transferência de sobretrabalho e à subordinação. Dessa maneira, enfrenta, todo o tempo, situações e riscos de instabilidade e precariedade, em busca de estabilidade e rentabilidade para sua agricultura (WANDERLEY, 1985, 1996; CARVALHO, 2005b; PLOEG, 2008).
Como características fundamentais da condição camponesa, PLOEG (2008, p. 40) apontou a luta por autonomia, em um contexto de relações de dependência e privações; a criação e o desenvolvimento de uma base de recursos[3] autocontrolada e autogerenciada, a qual permite o estabelecimento de formas de coprodução[4] entre o homem e a natureza, que interagem com o mercado e permitem a sobrevivência e as perspectivas de futuro, realimentando e fortalecendo a base de recursos; isso melhora a coprodução, o que fomenta a autonomia e reduz a dependência. Conforme o contexto socioeconômico, esse processo incorpora atividades não agrícolas. Por fim, a cooperação como possibilidade de regulação e fortalecimento dessas relações.
            Devido às diferenças históricas, sociais e geográficas entre sociedades e contextos de inserção, o campesinato desenvolveu e desenvolve uma variedade muito grande de formas de apropriação dos recursos naturais e de conhecimentos construídos para tal. Disso, resulta uma diversidade histórica, étnica e territorial, que compõe a especificidade da racionalidade camponesa, econômica, social e ecológica (CARVALHO, 2005b; PLOEG, 2008). O campesinato, praticando diferentes tipos de agricultura, constrói possibilidades de continuidade de sua forma de produção com base em uma forma estável de manejo dos recursos naturais, desde que mantidas as suas condições sociais e técnicas de reprodução - consumo pessoal, consumo produtivo e excedente de trabalho (GUZMÁN, 2005). Os traços fundamentais da empresa camponesa são os fatos de ela ser, a um só tempo e indissociavelmente, unidade de produção e unidade de consumo, e de ter sua racionalidade centrada na reprodução e na melhoria das condições de existência, com base na posse dos recursos naturais, sendo a família o seu fundamento. Esses traços conferem às unidades camponesas um caráter completamente distinto daquele das empresas capitalistas, que têm sua centralidade no lucro (CARVALHO, 2005b; COSTA, s/d; GUZMÁN, 2005; PLOEG, 2008; WANDERLEY, 1996).
            Do exposto, é necessário firmar a distinção entre os conceitos de camponês e de agricultor familiar. A agricultura familiar é uma categoria genérica que diz respeito aos casos em que a família é proprietária dos meios de produção e, simultaneamente, é quem organiza e realiza o trabalho. Nesse universo, a agricultura camponesa é uma forma que traz especificidades quanto aos objetivos da atividade econômica, às experiências de sociabilidade e à forma de inserção na sociedade (WANDERLEY, 1996; PLOEG, 2008).
            O vaticínio do desaparecimento da agricultura camponesa, frente ao desenvolvimento capitalista, está presente em diferentes correntes teóricas há muitos anos (CARVALHO, 2005b; GUZMÁN, 2005; PLOEG, 2008). A despeito disso, os camponeses e suas organizações sociais se fazem presentes com grande relevância na agricultura contemporânea, nas lutas pela terra e pelo desenvolvimento socioeconômico, vistas nas últimas décadas e no presente, no Brasil e na América Latina, assim como em diversas outras partes do mundo, persistindo como grupos fundamentais nas sociedades modernas (CARVALHO, 2005a, 2005b, 2012a, 2012b; COSTA, s/d; DESMARAIS, 2013; FABRINI; ROOS, 2014; FERNANDES, 2008, s/d; GUZMÁN, 2005; PLOEG, 2008; SILVA, 2003, STÉDILE, 2011; WANDERLEY, 1996).
            Completando o referencial teórico, a agroecologia aplica os conceitos ecológicos para alcançar o manejo sustentável dos agroecossistemas[5] (GLIESSMAN, 2002), sendo um meio de busca de transformação social e ecológica, assumida pelos movimentos do campo como parte do enfrentamento ao agronegócio (CALDART, 2012). O campesinato, dadas a coevolução com os recursos naturais e coprodução com a natureza, que incluem a forma de organização trabalho e a reprodução da unidade camponesa, é a própria expressão concreta, socioeconômica e ambiental, da agroecologia. É a utilização da ciência em favor do campesinato, incorporando os conhecimentos acumulados por ele e também aqueles empíricos e acadêmicos do pensamento convencional (GUZMÁN, 2005; CAPORAL; COSTABEBER, 2004). Pode ser entendida como um método e um processo de produção agropecuária que resgata os saberes destruídos ou escondidos pela modernização capitalista da agricultura e os incorpora aos progressos científicos e tecnológicos das últimas décadas, a viabilizar a produção de alimentos limpos, em qualquer escala, com custos menores e produtividade maior (MACHADO 2014, p. 35-42).
O PRV é uma tecnologia agroecológica de produção animal, posta em prática e sistematizada por Machado (2010, 2014), que preconiza o manejo agroecológico dos pastos a partir da aplicação das leis universais do pastoreio racional, enunciadas por André Voisin, tendo por base a sigmoide de crescimento do pasto e no ponto ótimo de repouso o seu fundamento. O PRV baseia-se no manejo agroecológico dos pastos a partir da aplicação das leis universais do pastoreio racional. Através da intervenção humana sobre a vida dos animais, das pastagens e do meio ambiente, tendo por base a vida do solo e maximizando-se o aproveitamento da energia solar, chega-se a uma elevação sustentada da produtividade e do retorno econômico. Segundo Machado (2010, p. 47-48), “há uma permanente ação recíproca e dinâmica entre o sujeito – o humano – e o objeto – o complexo sol, solo, pasto, animal – que se completa e se integra na maximização qualiquantitativa da produção”.

3. SOBRE A CONCENTRAÇÃO DA PRODUÇÃO DE LEITE DO BRASIL
            Com base nos dados dos Censos Agropecuários do IBGE, de 1975 a 2006, pode-se levantar elementos de observação e análise acerca da concentração da produção de leite no período, nas diferentes faixas de área total dos estabelecimentos, considerando-se, como pequenos, aqueles de até 200 ha; médios, de 200 a 2.000 ha; e grandes estabelecimentos,  aqueles acima de 2.000 ha (GUEDES, 2011).
            Nesse período, ocorreu um aumento permanente no volume produzido, havendo um salto entre 1985 e 1995-96. O número de vacas ordenhadas, que se elevou entre 1975 e 1985, estabilizou-se entre 1985 e 1995-96 e, em 2006, caiu para algo semelhante a 1975. A coincidência da maior elevação do volume e da redução do número de vacas ordenhadas em 1985 pode ser explicada pelo fato de que, na década de 80, assistiu-se a um grande aumento de produtividade, impulsionado pelo melhoramento genético, nutricional e sanitário dos rebanhos, resultando em um aumento da produtividade animal.
            Em relação ao número de estabelecimentos produtores de leite, ocorreu uma elevação entre 1975 e 1985, passando a declinar a partir daí, com pronunciada queda de 1995-96 a 2006, período coincidente com o aprofundamento das políticas econômicas neoliberais no Brasil, onde se viu uma grande concentração de capitais, somada à manutenção de uma das estruturas fundiárias mais concentradas do mundo. Estima-se que, apenas nos primeiros dois anos do governo de Fernando Henrique Cardoso, 400.000 pequenos agricultores tenham perdido suas terras e 800.000 pessoas perdido o emprego na agricultura (MORISSAWA, 2001).
             A elevação da produtividade e a concentração do capital e dos meios da produção são mecanismos de funcionamento do capitalismo, expressando-se através da progressiva especialização e redução do número de produtores. A situação observada para a produção de leite é parte do desenvolvimento das forças produtivas na produção agropecuária. A incorporação das faixas de área à análise, contudo, traz mais evidências de como se deu a redução do número de estabelecimentos produtores de leite.
            Após permanecerem estáveis os percentuais de estabelecimentos produtores de leite, por faixas de área, entre 1975 e 1995-96, deste momento até 2006, ocorreu uma redução da participação dos pequenos e dos grandes, elevando-se a participação percentual dos médios no número total de estabelecimentos produtores de leite do país. Finalmente, a análise da participação percentual no volume total de leite produzido, por faixas de área, mostra uma elevação da participação dos pequenos estabelecimentos, com redução da participação dos médios e grandes.
            De acordo com o último Censo Agropecuário realizado (IBGE, 2009), mais de 80% dos estabelecimentos onde há produção de leite estão em posse da agricultura familiar. Leite et al (2004) mostraram a importância da produção de leite nos assentamentos de Reforma Agrária das diversas regiões do país.
            Zoccal (2012) agrupou os estabelecimentos produtores de leite pelas faixas de produção diária. Aqueles com produção de até 50 litros representam 79,7% dos estabelecimentos e produzem 25,9% do volume total; com produção de 50 a 200 litros por dia, estão 17,1% dos estabelecimentos, produzindo 39,3% do volume; os demais 34,8% do leite são produzido pelos estabelecimentos com produção maior que 200 litros por dia, que representam 3,3% dos estabelecimentos produtores. Portanto, 65,2% do leite produzido no país é proveniente de estabelecimentos com produção diária de até 200 litros.
            Mas esse panorama serve de justificativa para a crença em uma suposta pouca importância dos estabelecimentos sem escala para a produção de leite nacional. Aqueles que defendem essa posição apontam a especialização, o aumento da escala e da qualidade - entendida sob um conceito restrito, mediados pela incorporação de tecnologias convencionais, como os caminhos necessários para uma unidade produtiva continuar na bovinocultura de leite. Como cenário, veem uma concentração crescente da produção, com uma redução certa, a níveis mínimos, da participação dos chamados pequenos produtores (ZOCCAL, 2012).
            É importante dizer que esse discurso integra uma conduta em que poder público e os laticínios, impulsionados por empresários da produção e da industrialização do leite, procedam à normatização e a condutas que favorecem aos grandes produtores, o que se dá, inclusive, através da apropriação de riqueza transferida pelos estabelecimentos que não produzem em escala, dificultando e ameaçando a produção de leite por parte deles (FERRARI et al, 2005)
            A bovinocultura de leite é uma linha de produção que esteve e continua, em diversos países e no Brasil, fundamentalmente alocada em pequenas e médias unidades produtivas, sendo levada a cabo com força de trabalho familiar. A necessidade de grandes investimentos e a elevação do custo unitário que acompanham o incremento da produtividade e da escala, quando praticado dentro dos moldes convencionais; a grande exigência em força de trabalho e atenção especializadas; e as taxas de lucro da atividade são fatores que colocam dificuldades à bovinocultura de leite em áreas extensas, permanecendo a preponderância dos pequenos estabelecimentos na atividade leiteira.
            Certamente, é necessário aprofundar a caracterização da concentração da produção de leite, podendo-se chegar a uma compreensão mais clara dos movimentos do capital e da      contraposição às suas determinações. A bovinocultura de leite, por motivos acima apontados, encontra obstáculos a ser posta em prática em grandes áreas. Assim, grande parte dos estabelecimentos de caráter empresarial, com as mais elevadas produções diárias, possivelmente não se encontram dentro da faixa de área dos grandes estabelecimentos. Portanto, tomando-se a extensão em área como categoria de análise, a concentração dentro das faixas de área de pequenos e médios estabelecimentos pode ser o caminho principal do capital. Em decorrência disso, é importante que sejam incorporados ao estudo destes processos, além de olhares particulares sobre as faixas de área das grandes regiões brasileiras, dadas as marcantes diferenças, inclusive ao que se refere ao módulo rural, a ligação entre a área e as faixas de produção diária, o número de animais, o uso de máquinas e a presença de assalariamento, como elementos indicadores de acumulação.
            Para a discussão e explicação da concentração, com aumento da participação relativa dos pequenos e médios estabelecimentos na produção de leite, pode-se apontar dois caminhos, que não se excluem e, simultaneamente, reforçam esse resultado. Por um lado, a tecnificação da produção, que, levando a uma elevação da produção e da produtividade, contribui para a concentração dentro dessas faixas de área; por outro, a resistência dos camponeses e a sua permanência nesta atividade. Em posse dos camponeses posse se encontra grande parte desses estabelecimentos, tendo a produção de leite tem papel de central importância nos mecanismos de reprodução do campesinato (GUEDES, 2011). Esse segundo caminho é o que se discute a seguir.

4. A RESISTÊNCIA DO CAMPESINATO E O PAPEL CENTRAL DA PRODUÇÃO DE LEITE
            Os diversos mecanismos de reprodução dos camponeses, em constante busca de autonomia e de melhorias nas condições de existência da família, estão pautados, fundamentalmente, na intensificação da produção através do trabalho[6] e na otimização do uso da terra e dos recursos naturais. Mediante estes processos, procuram aumentar a produtividade e fortalecer a sua base de recursos e esforçam-se para minimizar, tanto quanto possível, as perdas decorrentes de suas relações com o mercado. Para isso, buscam níveis de preços para os seus produtos que reduzam a transferência de riqueza e a utilização de insumos externos e adquiridos através de compra. A agricultura de baixo custo "é, basicamente, uma estratégia para conter os custos monetários tanto quanto os investimentos, empréstimos e despesas com insumos externos permitem. Por isso, pode ser descrita como uma 'agricultura de baixas entradas externas'. Também a mobilização, o uso, o desenvolvimento e a reprodução de recursos internos são centrais a esta forma de agricultura (PLOEG, 2000, p. 498-499, tradução dos autores).
            A qualidade e a quantidade de trabalho disponível e a sua organização familiar permitem a qualificação e a diversificação das atividades produtivas da unidade camponesa, procura integrá-las de maneira que forneçam insumos umas às outras. Com isso, busca-se proteção contra as instabilidades causadas pelas variações ambientais e de mercado, combinando-se o autoconsumo (produtivo e da família) com a geração de renda monetária. Os produtos marcados pela alternatividade, entendida como a articulação e complementaridade entre a atividade mercantil e o autoconsumo, ou seja, os produtos que apresentam a possibilidade de que lhes sejam dadas múltiplas destinações, tem grande importância para a agricultura camponesa no Brasil (CARVALHO, 2005b; PLOEG, 2008; WANDERLEY, 1996).
A produção de leite requer uma série de tarefas e cuidados específicos, voltados para a produção em si, para o beneficiamento e a comercialização.  A multiplicidade de tarefas inclui todas as atividades diárias de manejo, os cuidados alimentares, sanitários e reprodutivos dispensados aos animais, a ordenha, o transporte, o resfriamento, a transformação em derivados e a venda do(s) produto(s). Essa situação coloca uma necessidade e a possibilidade de ocupação da força de trabalho dos diversos membros da família. A centralidade da reprodução e a organização familiar do trabalho, a sua disponibilidade em quantidade e qualidade, a possibilidade de intensificação pelo trabalho possibilitam o aumento da produtividade e uma execução eficiente. Esses fatores, aliados ao fato de que, comumente, a produção de leite funciona como atividade central em seu sistema produtivo, fazem dela uma atividade adequada à unidade camponesa. O leite tem uma alternatividade marcante. Além de ser, simultaneamente, um produto muito vendável e um alimento de alta qualidade, tem grande importância no consumo familiar e é produzido durante todo o ano, também há a possibilidade de sua utilização como matéria-prima para diversos alimentos e de sua transformação artesanal em uma série de derivados, como queijos, requeijões, manteiga, iogurte, coalhada e creme de leite.
            Pelo exposto, podem ser encontradas explicações do porque a produção de leite é uma atividade muito presente nas unidades camponesas, onde desempenha um papel central nos mecanismos de resistência e reprodução. Em regiões tão diversas quanto o Noroeste de São Paulo, o entorno do Distrito Federal, o Oeste da Santa Catarina e o sudoeste do Paraná, o estado de Rondônia, o Sudeste do Pará, os Sertões do Ceará e de Sergipe, a Zona Canavieira do Nordeste, o Sul da Bahia e o Triângulo Mineiro, o leite é apontado e observado como produto de importância destacada para o funcionamento dos pequenos estabelecimentos, para a geração de renda e alimento e para a permanência dos agricultores familiares e camponeses na terra (ALTAFIN et al, 2011; COUTO, 2003; FERRARI et al, 2005; FINOTO; CARVALHO; SILVA, 2014; GOBBI; PESSÔA, 2009; GUEDES, 2006; GUEDES; COSTA, 2011; LEITE et al., 2004; MELLO; SCHMIDT, 2014; OLIVEIRA, A., 2013; OLIVEIRA, N., 2014; SCHIMITZ; COUTO, 2014; SEBASTIÃO, 2002; SOUZA; WAQUIL, 2014; TARSITANO; FABRICIO; PROENÇA, 2014; ZOCCAL, 2013). Isso se deve, tanto a características do produto, quanto de seus processos de produção, beneficiamento e comercialização, que se prestam ao desenvolvimento dos mecanismos de reprodução camponesa, acima apontados. A partir dos estudos citados e dos trabalhos de assessoria técnica em ações produtivas realizados pelos autores em parceria com agricultores, ao longo da última década, procede-se à análise a seguir.
            Os estabelecimentos, em geral, possuem áreas totais inferiores a 50 ha. A base da alimentação do rebanho é o pasto e, com exceção dos agricultores da região Sul, não se busca a racionalização do manejo de pastagens. É comum a suplementação concentrada, volumosa e mineral. Em geral, ocorrem tentativas de constituição de reservas de alimento para a compensação das flutuações estacionais da produção dos pastos; porém, via de regra, elas são insuficientes, havendo grande sazonalidade na produção de leite e, também, na saúde dos animais. Não raro, recorre-se à compra de alimento e ao aluguel de pastos.
            Os rebanhos são compostos por animais mestiços ou sem raça definida, sendo bastante comuns os "cruzados" (provenientes de cruzamentos feitos entre raças europeias e zebuínas). O uso desses animais, mesmo supondo-se que são menos produtivos, se deve aos menores preços de compra e à rusticidade, a lhes conferir maior resistência às adversidades orgânicas e ambientais, como restrições alimentares, altas temperaturas e umidades, infestação por parasitas e outras afecções. Isso se traduz em menores gastos com insumos externos, como alimentos e medicamentos. Cabe salientar que é possível utilizar cruzamentos que combinam produtividade (tomada em sentido amplo, levando-se em conta os custos, a sustentabilidade produtiva e econômica, e não apenas como produção de leite/animal/dia) e adaptação às condições climáticas brasileiras. Com o manejo agroecológico, tem-se um uso racional dos pastos, que é o alimento natural dos ruminantes e o de menores custos, podendo-se chegar a resultados econômicos muito satisfatórios e sustentáveis.
            A produção de leite é dotada de importância estratégica dentro dos mecanismos de geração de renda das famílias camponesas. Um dos aspectos desse papel é a possibilidade ingressos monetários de curto prazo. Quando vendido da maneira convencional, aos laticínios e cooperativas convencionais, garante a geração de renda monetária mensal. Como é possível o processamento e fabricação de derivados de maneira artesanal e, ainda hoje, é comum a venda do produto in natura, há possibilidade de realização de vendas com recebimento diário ou semanal. O caráter dessa entrada de recursos monetários contrapõe-se à sazonalidade das rendas agrícolas, que obrigam os agricultores a passar por períodos de ingressos muito pequenos e a uma administração de dinheiro que, em grande parte dos casos, não é possível, devido às deficiências de escolarização formal e de capacitação, impostas por suas trajetórias de vida. Mesmo com a variação sazonal da produção, quando não é raro que as reservas de alimento para o gado não sejam suficientes e/ou não há crescimento algum do pasto, pode chegar a cessar completamente, a renda gerada pelo leite tem um caráter de continuidade, visto que, na maior parte do ano, há alguma produção. De maneira articulada, está a criação dos machos (que, nas criações convencionais, são descartados ainda bezerros). Esses animais funcionam como poupança e, também, são utilizados em casos de necessidade monetária emergencial, além de como fonte de carne. A renda gerada permite o custeio de gastos, referentes, tanto ao consumo familiar (alimentos não produzidos na unidade, medicamentos, roupas e outros bens de consumo), quanto ao consumo produtivo (equipamentos, ferramentas e utensílios necessários à produção). Além disso, serve-se ao investimento em outras atividades produtivas e na estruturação da unidade. Como característica do campesinato, as poupanças e os ingressos, monetários ou não, são utilizados, por um lado, para investimento na unidade, alcançando maiores graus de estruturação e, assim, aumentando a base de recursos; por outro, para melhorar a qualidade de vida da família, através da redução da penosidade do trabalho, da diminuição do tempo de trabalho necessário, do acesso a bens materiais e da possibilidade de um conforto maior. 
Por ser fonte de alimento e a principal e mais estável fonte de renda, pelo caráter do trabalho a ela vinculado, cujas características foram acima apontadas, proporciona consumo, trabalho e renda para a família, constituindo-se em um fator decisivo para a estabilidade e para a fixação no campo. Como pecuária específica e por aspectos de seu funcionamento diário, possibilita a integração com outras atividades de produção e fornece insumos ao sistema, elevando sua fertilidade e produtividade, reduzindo custos e possuindo alta capacidade de agregação de valor, constantemente buscada no modo camponês de agricultura. A produção de leite aparece, por vezes, como alternativa de diversificação das atividades agrícolas e é prioritária a ser desenvolvida, quando os camponeses conseguem acesso à terra. Além da importância material que aqui está em discussão, tem um caráter simbólico de grande relevância, sendo a posse de algumas vacas tomada pelos agricultores como identidade, inclusive com marcado traço afetivo, que dificulta a racionalização do manejo.
            Como fatores de importância econômica para o desenvolvimento da atividade leiteira pelos camponeses e agricultores familiares, além daquelas relacionadas à força de trabalho, à renda e ao sistema produtivo, pode-se apontar a possibilidade de utilização de áreas consideradas impróprias para as atividades agrícolas. Os sistemas produtivos dos camponeses, em grande parte dos casos, são pouco intensivos no uso de tecnologias e não produzem em escala. Ainda assim, o uso intensivo da força de trabalho, inclusive com o uso do tempo parcial de alguns membros da família, permite a sua otimização; a utilização intensiva dos instrumentos de trabalho, dos recursos naturais e da terra, inclusive de terras marginais; e o empenho para reduzir a utilização de insumos externos são fatores que, se presentes, possibilitam menores custos de produção. A descentralização das unidades de beneficiamento (laticínios) também é apontada como importante, mas sabe-se que, ainda assim, os custos com frete são um problema. Esse conjunto de fatores pode constituir-se em vantagens econômicas.
Os produtos da agricultura camponesa, em geral, possuem uma grande quantidade de trabalho incorporado, comparativamente muito mais elevado do que aquela contida nos produtos industrializados e também nos produtos da agricultura capitalista de escala. Por esse trabalho, os camponeses conseguem retorno apenas parcialmente, tendo os preços de seus produtos constantemente pressionados para baixo. Portanto, o campesinato, em suas relações mercantis, é permanentemente explorado pelo capital, mediante transferência de riqueza[7]. E, como a relação entre a indústria e a agricultura é, tendencialmente, desfavorável a esta última, estabelece-se mais uma etapa desse ciclo de exploração, pois os preços dos produtos camponeses não são capazes de cobrir os preços dos insumos e de outros produtos industrializados consumidos pelos camponeses (CARVALHO, 2005b; PLOEG, 2008; SILVA, 2003; WANDERLEY, 1985).        
De fato, a falta de controle sobre os preços, ditados pelo mercado, é um dos obstáculos à contribuição do leite para a resistência camponesa. Na comercialização de leite há, inclusive, mecanismos específicos de extração de riqueza das unidades que não produzem em escala, conjugados ao favorecimento das explorações leiteiras de grande escala, como é o caso da remuneração e dos preços de frete diferenciados por volume de produção. Assim, paga-se um preço mais elevado pelo litro de leite daqueles fornecedores de maiores volumes diários, ao mesmo tempo que cobra-se um preço mais alto pelo frete, para o recolhimento de menores volumes, provenientes das unidades familiares, sendo este último fato sendo injustificadamente explicado, pelas indústrias, pela contribuição da escala para os custos de frete. Além disso, as exigências feitas em termos de qualidade, estritamente entendida por padrões higiênico-sanitários, aos quais se vinculam, sobretudo no caso da fabricação de derivados, estruturas onerosas e desnecessárias, com as quais é impossível os agricultores arcarem, dadas as suas condições financeiras. Soma-se, ainda, o privilégio dos grandes produtores em termos de acesso ao crédito, à assessoria técnica, ao melhoramento genético e a ações de controle sanitário. Dessa maneira, constroem-se formas de dificultar, crescentemente, a permanência dos camponeses na atividade (FERRARI et al, 2005).
A luta contra a transferência de riqueza, pela manutenção e pela melhoria de suas condições de sobrevivência – entendida como algo muito além da subsistência – e a reação às alterações negativas destas condições através da elevação do esforço produtivo explicam, em parte, o fato de os camponeses continuarem em atividades ou situações de baixo retorno econômico. No caso da produção de leite, imersa em todas essas relações e processos, soma-se o papel de atividade central que assume dentro da unidade camponesa, expresso nos inúmeros aspectos discutidos anteriormente. A escassez de recursos financeiros e a falta de conhecimento também são obstáculos objetivos às mudanças nas atividades produtivas.  
Para uma análise mais completa, outros aspectos, relacionados à dimensão sociocultural do campesinato precisam ser incorporados. A necessidade de direção, ao nível da família, de todas as etapas dos processos de trabalho no interior da unidade, a intensidade necessária ao trabalho e a multiplicidade de tarefas requerem flexibilidade e uma forte disciplina (WANDERLEY, 1996, p. 28-29). Essa condição origina o traço subjetivo de autossuficiência e individualismo do camponês. A desconfiança é outro elemento da subjetividade camponesa, reflexo e resposta aos ambientes hostis nos quais precisa viver, que faz com que o conhecimento e as relações construídas sejam decisivos. A desconfiança pode ser fator de autonomia (PLOEG, 2008, p. 43-44), mas também pode impedir mudanças necessárias. Assim, fazendo a ligação entre o passado e o presente, e entre estes e o futuro, o camponês recorre e constrói um conhecimento tradicional para tomar suas decisões, o qual transmite aos filhos (WANDERLEY, 1996, p. 30). Esse conjunto de fatores subjetivos, certamente, tem acentuada influência na permanência dos camponeses em atividades nas quais já tenham experiência de trabalho, mesmo em situações adversas. 
            As unidades familiares apresentam, em geral, baixa produtividade e baixa eficiência técnica, sendo necessário considerar que, a essa situação, existem muitas exceções, sendo grandes as diferenças dentro de uma mesma região e, sobretudo, entre as regiões do país. Colocando de lado o processo histórico e a questão agrária brasileira, a marginalização e os privilégios expressos nas políticas agrícolas e agrárias (PRADO, 1999), o discurso preponderante nas empresas públicas de pesquisa agropecuária justifica essa situação pela falta de acesso dos pequenos produtores à educação e à tecnologia (ZOCCAL; ALVES; GASQUES, 2013) e apregoa que um enorme contingente de "pequenos produtores”, por declararem não vender sua produção, não devem ser contabilizados no setor produtivo do leite brasileiro (ZOCCAL, 2012), corroborando o pensamento dominante que prega a especialização e a produção em escala como a forma única viável.
As referidas tecnologias, em sua maior parte, foram desenvolvidas e difundidas de forma a facilitar a sua incorporação pelos produtores de escala. Algumas delas precisam, de forma urgente e massiva, ser apropriadas e adaptadas às produções de menores escalas e à agricultura camponesa. Isso, obviamente, precisa ser feito de maneira conectada ao acesso concreto aos demais instrumentos públicos de fomento, destacadamente o crédito e a assistência técnica. Cabe dizer, entretanto, que todos esses instrumentos, para que possam ser efetivos, precisam ser reconstruídos e reorientados para o atendimento às lógicas de produção e reprodução e às condições materiais e administrativas dos camponeses. Por outro lado, é igualmente importante que os agricultores capacitem-se para a gestão, administração, uso de tecnologias e de práticas adequadas de produção.
O crédito, a assistência técnica e as tecnologias continuam a ser, predominantemente, orientados para a geração de lucro das grandes indústrias de máquinas e de insumos, principalmente os fertilizantes de síntese química e os agrotóxicos. Essa situação coloca os agricultores em um ciclo vicioso de dependência.  - ou, como em Machado (2014, p. 182) na "rota da dependência". Nesse contexto, assume caráter essencial e urgente a reorientação da matriz tecnológica de produção para a agroecologia.
A agroecologia, enquanto forma de relação com os recursos naturais para a produção agropecuária, preconiza um caminho alternativo que, comprovadamente e de maneira sustentável, potencializa a produção e a fertilidade dos agroecossistemas. São menores os custos, os produtos não têm contaminação e possuem elevada qualidade nutricional, possibilitando melhores resultados econômicos e sociais. As tecnologias agroecológicas, muitas delas utilizadas há décadas e com resultados positivos em diversos locais, como é o caso do PRV, foram sistematicamente negligenciadas e desqualificadas no Brasil, tanto pela maior parte dos pesquisadores e professores das universidades, quanto dos profissionais das instituições envolvidas em ações de fomento e assistência técnica. Tecnologia agroecológica de produção de leite e carne, quando comparado aos sistemas convencionais de produção, o PRV apresenta menores custos de implantação e de produção, maior rentabilidade e possibilita a racionalização e a intensificação do uso dos recursos (solo, pastagens, água, animais e instalações), com priorização do uso da energia solar e de insumos produzidos localmente.
5. O PRV E A POTENCIALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO DE LEITE COMO FATOR DE RESISTÊNCIA E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DO CAMPESINATO
            As mudanças no mercado de leite no Brasil, ocorridas nas últimas décadas, entre as quais se aponta a desregulamentação nacional, a maior abertura ao mercado internacional e a Instrução Normativa 51 (OLIVEIRA, 2014) - em geral, medidas neoliberais - colocaram maiores desafios à produção de leite, em particular aos camponeses, onde a permanência na atividade leiteira depende, também, do êxito em responder a essa situação. Neste cenário, as necessidades de mudanças ambientais, econômicas e sociais são cada vez mais evidenciadas, sendo preciso, assim, encontrar alternativas de produção adequadas.
            Como apresentado no capítulo anterior, é de comum acordo o fato de que o campesinato vem sofrendo, cada vez mais, com as exigências postas pelas relações mercantis, incluídos os altos custos dos insumos agrícolas, sendo necessária a busca permanente de redução dos custos de produção para que se possa gerar maiores rendas e garantir, tanto sua continuidade na atividade, quanto a sustentabilidade das futuras gerações. Nesse contexto, o uso racional dos recursos naturais é um dos principais desafios a ser incorporado pelo campesinato na unidade de produção, visto que o manejo extensivo de pastagens gera muitos impactos negativos no meio ambiente e nas condições produtivas e econômicas desses agricultores. No que se refere à degradação das áreas verdes, nativas ou não, gerada pelo desmatamento, queimadas e superpastejo, o manejo racional se apresenta como alternativa ao processo depredatório de produção de leite, onde se vê a redução da capacidade produtiva das pastagens, levando à abertura de novas áreas e limitando, assim, as funções das relações existentes entre os organismos vivos e seu ambiente (BANCO DO BRASIL, 2010).
            Outro impacto, gerado principalmente pelo processo de modernização da agricultura ao longo das últimas décadas, foi a seleção de animais baseada, principalmente, na produtividade dos indivíduos, deixando-se de lado os critérios de adaptação. Assim, difundiram-se vacas que produzem mais leite, mas são menos resistentes aos parasitas, ao estresse térmico e às doenças, como por exemplo, a mamite (MACHADO; HONORATO, 2008).
            Todos esses fatores, entre outros, limitam o desenvolvimento da cadeia produtiva e a emancipação do campesinato, sendo todos eles sempre relacionados aos aspectos geopolíticos e sociais do território do qual fazem parte. Considerando a produção primária como a parte mais fragilizada da cadeia, em que ações específicas podem gerar transformações positivas e resultados expressivos no contexto geral, este é o elo que merece maior atenção e investimento, utilizando-se o conhecimento e a tecnologia já disponível nos centros de pesquisa e extensão, passíveis de ser aplicadas e desenvolvidas em parceria com os agricultores.
            Como forma de contornar parte desses problemas, iniciativas vêm sendo desenvolvidas através de programas de caráter nacional e estadual em várias regiões, com objetivo de minimizar os impactos negativos no meio rural, aumentar a produtividade e reduzir os custos de produção, ampliando, assim, a renda líquida da atividade.
            Segundo Machado (2014) qualquer proposta tecnológica produtiva deve gerar resultados financeiros positivos a quem a execute. A diferença é que esses resultados não comprometam ou agridam a dimensão ambiental e o balanço energético. Ou seja, é indispensável que altos valores de produtividade não provoquem externalidades ambientais negativas, cujos custos, pelos quais o indivíduo-produtor é responsável, são repassados à sociedade. Como proposta para a sustentabilidade energética, econômica e ambiental na bovinocultura, destaca-se o Pastoreio Racional Voisin (PRV), sendo este o sistema mais eficiente na transformação da energia solar em pasto de qualidade para os animais. Tecnologia bem estabelecida dentro da ciência da agroecologia, o PRV apresenta condições de superar a trajetória de dependência de insumos industriais e baixo rendimento das atividades dos agricultores. O manejo das pastagens é realizado de forma a beneficiar o desenvolvimento fisiológico das forrageiras e melhorar as condições físicas e químicas do solo. Machado Filho (2011 pg. 19), diz que “a produção agroecológica pressupõe a otimização dos recursos endógenos, uso intensivo de energia solar, é uma proposta de ‘conhecimento-intensivo’, em contraposição a sistemas capital-intensivos”.
            O PRV consiste na aplicação rigorosa dos princípios da fisiologia vegetal, da dinâmica da vida do solo, do respeito ao bem estar-animal e da intervenção humana na condução do manejo dos animais. “Baseia-se no emprego dialético das quatro leis universais do pastoreio racional, enunciadas por André Voisin, em 1956, em sua obra Produtividade do Pasto” (MACHADO, 2010, pg. 26).
            A primeira, a lei do Repouso, estabelece que para que um pasto possa dar a sua máxima produtividade, é necessário que, entre dois cortes a dente sucessivos, haja passado o tempo suficiente que permita a forrageira armazenar nas suas raízes as reservas necessárias para um início de rebrote vigoroso, bem como realizar uma grande produção de pasto por hectare.
            A segunda, lei da Ocupação, diz que o tempo global de ocupação de uma parcela deve ser suficientemente curto para que um pasto cortado a dente no primeiro dia do tempo de ocupação não seja cortado novamente pelo dente dos animais, antes de que estes deixem a parcela.
            Essas duas primeiras leis se referem à pastagem e trazem a seguinte conclusão: se existe um ponto ótimo para cortar o pasto, também existe um ponto ótimo para que o animal pastoreie nele, sendo que, na produção leiteira, ocupações não superiores a um dia fornecem as maiores produções.
            A terceira é a lei do Rendimento Máximo, onde se diz que a parte do pasto de melhor qualidade e mais facilmente colhida - a parte superior - deve ser ofertada aos animais de exigências nutricionais mais elevadas, no caso da produção de leite, as vacas em lactação.
            A quarta, lei do Rendimento Regular, nos leva a raciocinar que uma vaca terá maior rendimento quando a mesma não permanecer mais de um dia na mesma parcela, ou seja, a medida que a pastagem vai sendo pastoreada a fundo, o animal colherá cada vez menores quantidades de pasto, e de menor valor nutritivo.
            Não só o PRV se rege pelas quatro leis enunciadas por Voisin, pois seus princípios também podem ser, e são utilizados para melhorar a produção convencional. Porém, é no PRV que se busca potencializá-los, bem como trabalhar na inserção de condutas inovadoras, tais como o acesso permanente e livre à água, à sombra e ao sal mineral em todas as parcelas; o respeito ao tempo de repouso; a implantação de pastagens por sobressemeadura; o não uso de fertilizantes de síntese química e de agrotóxicos; a produção de pastagens diversificadas; e a dispensa de ração. Ou seja, mesmo que alguns dos resultados não sejam imediatos à implantação, à medida que as técnicas vão sendo incorporadas, a viabilidade da atividade se amplia, dando ao camponês condições dignas de vida e independência, o que torna possível sua permanência no campo.
            Como forma de avaliar os benefícios da produção leiteira nos sistema de PRV na região sul do país, alguns autores estabeleceram índices de aplicação das tecnologias como forma de medir o grau de conformidade do seu uso com os princípios que regem o PRV (Lorenzon, 2004; Wendling, 2012; Souza, 2010).     Segundo Lorenzon (2004) e Wendling (2012), quanto maior a adoção das tecnologias do PRV nas unidades de produção, maiores produtividades são encontradas, mesmo sem o uso de insumos industriais, e menores são os custos de produção de leite, o que representa maior retorno financeiro às famílias.
            A comparação entre sistemas pastoris, semi-intensivos e intensivos feita por Dartora (2002) mostrou maior produtividade animal, menor custo médio/vaca e menor custo total por litro de leite para os sistemas pastoris, e suas conclusões apontaram melhores resultados econômicos para estes sistemas e, adicionalmente, a importância decisiva da ocorrência de processamento e comercialização do leite e/ou derivados para a rentabilidade geral dos sistemas. Em seu trabalho, Lorenzon (2004) mostrou que os sistemas de produção a pasto apresentam renda líquida, rentabilidade por litro de leite produzido e renda por hectare significativamente maiores, quando comparados com sistemas com alimentação no cocho, concluindo que a produção de leite em PRV atende melhor à qualidade de vida no trabalho, ao bem-estar animal e ao rendimento econômico. Wendling (2012) apontou a superioridade e a vantagem econômica do PRV, corretamente implantado, apresenta maior retorno líquido quando comparado ao sistema convencional.
            Segundo Wendling (2012), o lucro líquido da atividade leiteira variou de R$ 1.200,00 a R$ 3.702,00 por hectare/ano de 2011 para as unidades de produção em sistema de PRV analisadas na região oeste do estado de Santa Catarina, sendo os menores valores referentes às famílias que se encontram em processo de adoção da tecnologia e o maiores valores as famílias que já o adotam em sua plenitude.        Como a definição da atividade produtiva a ser executada, bem como a permanência do agricultor , está ligada à rentabilidade por área, torna-se necessário comparar a rentabilidade da atividade leiteira no sistema de PRV com as de outras linhas produtivas, principalmente as presentes na mesma região. Desta maneira, a produção de soja na safra 2011/2012 para este mesmo estado, os valores situaram-se entre R$ 770,72 e R$ 987,40 por hectare (HIRAKURI, 2011) e, para o fumo, reconhecida como uma das culturas mais rentáveis do país, um hectare rende R$ 2.000,00 (KANNENBERG, 2014).
            Apesar da rentabilidade da produção de leite em PRV estar acima da soja, o mesmo não ocorre quando comparado ao fumo. Porém, não podemos deixar de lado as preocupações que dizem respeito à qualidade de vida e à produção limpa, pois, ainda que com esta rentabilidade, a produção de fumo sempre causou um impacto social, ambiental e cultural muito negativo nas regiões onde está inserido. Os camponeses recebem um pacote pronto das empresas, associando os monocultivos a um alto uso de agrotóxicos.
            Assim, no que diz respeito à viabilidade do PRV, os resultados demonstram que, quanto maior o índice de conformidade, os sistemas se demonstram superiores porque os custos reduzem pela diminuição do uso de insumos e pela ausência da necessidade de renovação das pastagens. Essa diminuição no uso de insumos só é possível devido à biocenose e à transmutação de elementos de baixa energia, que garantem a fertilidade do solo, segundo Machado (2010), a um patamar ainda não conhecido, sendo esses processos ativados pelo acúmulo de bosta e urina e aumento da matéria orgânica dentro das parcelas.
            As condições apresentadas mostram que o PRV se coloca como fator de apoio à resistência e ao desenvolvimento econômico do campesinato, pois o uso racional dos recursos naturais viabiliza a ampliação da produtividade, bem como a redução dos custos, criando condições de independência e aumento da autoestima dos agricultores. Associada a isto está à melhoria na qualidade de vida e a criação de condições de permanência dos camponeses na atividade leiteira e de sua resistência enquanto classe social.
            Por fim, é importante dizer que, como inovação, o PRV exige uma nova postura do trabalhador em relação ao seu objeto fundamental de trabalho, a terra, eliminando formas predatórias de uso do solo e demandando uma reconfiguração da compreensão e do entendimento dos fenômenos naturais, os quais foram muito deturpados, inclusive dentro do campesinato, como resultado da ação ideológica do mercado capitalista e dos instrumentos oficiais de extensão. Conforme Ribas (2008, pg. 60) “os critérios de desempenho baseados estritamente na eficiência da ação econômica, cuja centralidade se dá no aumento da produtividade, independente de seu custo, se mostram, ainda que não irrelevantes, insuficientes para dar respostas aos desafios colocados pela humanidade neste início de milênio, frente aos principais impasses que vivemos, entre eles: a necessidade de produção de alimentos para mais de seis bilhões de seres humanos, combinada com as urgências ditadas pela preservação dos recursos naturais”.

6. COOPERAÇÃO
Se a agroecologia serve de meio de apropriação de conhecimento pelos camponeses, de minimização da sua dependência econômica e de maior aprofundamento e qualificação da relação de coprodução com a natureza, a cooperação tem um papel fundamental e indispensável na organização e desenvolvimento produtivo, econômico, político e social (CONCRAB, 1998; CALDART, 2012; GUEDES; COSTA, 2011; MARTINS, 2012). O binômio cooperação-agroecologia pode ser apontado como a principal base de sustentação a ser utilizada pelo campesinato para alcançar patamares mais elevados de autonomia, possibilitado pelo aumento da eficiência econômica e produtiva e pelo fortalecimento da atuação sociopolítica. Assim, além de ferramentas para a autonomia, são potenciais instrumentos de construção e amadurecimento da consciência.  É preciso que a cooperação vinculada a um projeto estratégico de resistência ao capitalismo e mudança da sociedade. A agroecologia deve estar firmemente apoiada em uma cooperação com esse caráter, tendo-se em mente que a mudança da matriz tecnológica, isoladamente, não resolverá as mazelas da classe trabalhadora; ela pode ser um importante instrumento político e econômico, se estiver combinada com o enfrentamento direto ao modelo do agronegócio e dirigida por princípios socialistas. As referidas mazelas somente serão extintas mediante a organização popular orientada para a transformação do modo de produção, sendo a cooperação é um dos pilares principais (GUEDES; COSTA, 2011).
            A cooperação entre os camponeses abrange um grande número de práticas e experiências ao longo da História. No caso do Brasil, os relatos expõem os mutirões e as trocas de dia como duas práticas muito utilizadas, relacionadas ao trabalho. Como forma de consumo mais racional, baseada em relações de parentesco e amizade, também a divisão da carne de animais abatidos entre famílias, alternando-se aquela que faz o fornecimento (CANDIDO, 2001). As experiências associativas e cooperativas mais estruturadas e antigas são observadas, sobretudo, mas não exclusivamente, entre camponeses e outros agricultores familiares da região Sul, fruto de uma importante particularidade do patrimônio sociocultural dessa região, a ascendência europeia. Com a massiva imigração de camponeses europeus, na segunda metade do XIX e início do século XX, estabeleceram-se as colônias no Sul do país, onde se reproduziam relações de cooperação originadas em seus países de origem. Em se tratando de questões relacionadas à tradição cultural, o individualismo e a autossuficiência com que os camponeses encaram os seus processos de produção e reprodução, anteriormente discutidas, são importantes entraves ao desenvolvimento de formas mais organizadas de cooperação.
            No caso da produção de leite, inúmeras são as experiências, estudos e relatos que mostram a importância da cooperação para a permanência e desenvolvimento da atividade, assim como para o estabelecimento de vantagens econômicas. A cooperação viabiliza a estruturação econômica, desde as formas mais simples às mais complexas, proporcionando a eliminação de intermediários, o aumento da eficiência no uso dos recursos econômicos e naturais disponíveis, a divisão e a racionalização do trabalho, conferindo maior estabilidade à atividade. A realização de compras coletivas de insumos, com vistas à diminuição de custos, a instalação de tanques de resfriamento comunitários e as vendas coletivas, como forma de garantir melhores preços, são algumas formas simples de trabalho cooperado. Como exemplos de níveis mais desenvolvidos, pode-se apontar o gerenciamento da coleta e da comercialização, com estabelecimento de rotas e internalização do transporte, se for esse o caso. As experiências mais complexas envolvem a elevação das escalas através da unificação de produções individuais e coletivas, a agroindustrialização e a comercialização de leite e de uma vasta gama de seus derivados. A agroindustrialização cooperada possibilita a estabilidade dos preços recebidos pelo leite in natura e a internalização dos ganhos com a comercialização dos produtos finais. Esse processo faz com que os camponeses possam se apropriar de uma parcela maior de sobretrabalho, reduzindo a sua transferência para o capital comercial e industrial.
            A cooperação possibilita elevação da escala, maior acesso e melhor uso de meios, insumos e serviços, incorporação de tecnologias, uso de equipamentos e máquinas e acesso a recursos financeiros, possibilitando a elevação da produtividade e da rentabilidade por área, as economias de escala, a redução dos custos unitários e um maior controle dos processos de comercialização, assim como o aumento da capacidade produtiva e das possibilidades de inserção e ampliação dos mercados.
Sem dúvida, muitos são obstáculos à cooperação em níveis mais estruturados, colocados por dificuldades organizativas e administrativas, pelas escalas, pela pequena flexibilidade e margem de manobra para a aquisição e o escoamento, pela impossibilidade de realização dos investimentos necessários, pela força pequena ou ausente de influência sobre o mercado e os preços, pelas constantes investidas de agentes públicos e privados ligados ao agronegócio; enfim, pela inserção em um contexto político e econômico hostil. Essa realidade coloca problemas que atuam para a fragilização da cooperação como proposta de fortalecimento da resistência do campesinato. Para os camponeses, impõem-se as necessidades de qualificação de todas as etapas e processos da produção, beneficiamento e comercialização, de aumento das escalas, de intercooperação, de organização e de pressão para o estabelecimento de ações estatais de apoio.
            Um aspecto crucial a ser considerado é a necessidade de os camponeses capacitarem-se para a administração e gestão de empreendimentos cooperados e de maior escala. Em geral, é grande a deficiência dessa capacitação, como resultado da marginalização histórica que lhes foi imposta, tendo acesso escasso e precário a recursos materiais e à instrução formal. Sanar essa deficiência, que é uma necessidade premente por si só e em qualquer situação, é tanto mais importante quando se trata da mobilização de maiores quantidades de trabalho e de recursos.
              Dos estudos de Chayanov sobre o cooperativismo, alguns elementos centrais (GUZMÁN, 2005; CARVALHO, 2014) podem servir de base de reflexão para a implementação de experiências estruturadas de cooperação entre camponeses. O cooperativismo rural precisa se apoiar na construção de formas de atuação coletiva que integrem aspectos da organização do trabalho característica da unidade familiar camponesa. De acordo com os diferentes tipos de atividade produtiva, de condições geográficas e de qualificação da produção, são definidos tamanhos para as empresas agrícolas, denominados ótimos diferenciais, que possibilitem os menores custos de produção possíveis. Deve-se proceder a uma cooperação vertical que combine, de maneira flexível, unidades produtivas de diferentes tamanhos, de acordo com as formas de agricultura. Assim, organizam-se sistemas de socialização do trabalho que articulam a produção e são coordenados em democracias de base, de maneira que sejam controlados os processos de comercialização, impedindo que esse controle seja feito pelo capital comercial. A cooperativa camponesa é uma variação da organização das unidades camponesas, na qual são utilizados os elementos de superioridade econômica das grandes explorações. Para além das vantagens da coletivização do uso de recursos materiais e dos processos de industrialização e comercialização, a cooperação camponesa torna possível a disciplina para a elevação dos níveis técnicos e tecnológicos (CARVALHO, 2014).

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
            O campesinato da atualidade, em diversas partes do mundo e em uma multiplicidade de formas, enfrenta a expropriação do sobretrabalho e a dependência, resistindo à destruição pelo capital. Para isso, apoia-se em uma base de recursos limitada e busca garantir sua produção, reprodução e progresso, através do aumento da autonomia. Como se pôde ver, a produção de leite, havendo ou não comercialização dela decorrente, é uma atividade central para os mecanismos de resistência dos camponeses, devido ao papel estratégico que desempenha na alimentação, na geração de renda e no trabalho da unidade camponesa.        Os estabelecimentos da agricultura familiar, entre os quais estão as unidades camponesas, produzem 57,6% do leite do país (IBGE, 2009). Atualmente, pode-se assistir a aumento progressivo de produção e a escalas enormes em alguns estabelecimentos; ainda assim, mais de 65% da produção de leite nacional vem de estabelecimentos que produzem até 200 litros/dia (ZOCCAL, 2012).
A participação percentual de pequenos e médios estabelecimentos no volume total produzido aumentou nas últimas décadas (GUEDES, 2011). Sabemos que, em parte, isso pode ser explicado pela tecnificação dos estabelecimentos familiares de maiores rendas, apoiando-se no acesso ao crédito. Muito provavelmente, essas famílias passam a menores graus de camponeidade[8], aproximando-se mais do modo empresarial de fazer agricultura. Mesmo elevando suas escalas de produção, estarão mais dependentes de relações mercantis - visto que essa tecnificação se faz nos moldes convencionais – para produzir e, portanto, mais vulneráveis. Por outro lado, pode-se afirmar que a participação elevada e permanente dos pequenos e médios estabelecimentos na produção de leite se deve também às unidades camponesas, devido ao papel estratégico do leite nestes estabelecimentos. Sendo assim, é necessário potencializar e estabilizar esse papel tanto quanto possível, como contribuição à resistência e à autonomia do campesinato, sendo a cooperação e a agroecologia dois pilares fundamentais de sustentação.
O modelo a partir do qual se deu a organização da agricultura brasileira a partir da década de 60 do século XX, ao espelho do que ocorreu no restante do mundo, deu continuidade, sob novos instrumentos, à exploração e à expulsão dos camponeses. Concomitantemente, provocou uma devastação ambiental sem precedentes, com grandes desmatamentos, agressão severa à biodiversidade animal e vegetal, contaminação do ar, dos solos, das águas e dos alimentos. Ainda, o atrelamento e dependência da agricultura em relação à indústria de insumos artificiais e máquinas.
A agroecologia, como matriz tecnológica e afirmação da forma camponesa de fazer agricultura, é um meio de se romper com a rota da dependência e realizar movimentos contrários a essa situação. A eliminação do uso de insumos industriais, a redução de custos e a fertilidade crescente possibilitam a melhoria dos resultados econômicos, a descontaminação e proteção ambientais e a produção de alimentos de alta qualidade a baixos preços. A agroecologia guarda estreita relação com modo de uso dos recursos naturais praticado pelo campesinato, devendo, inclusive, ser entendida como a sua expressão. A construção de um pensamento científico transformador, que se oponha ao pensamento convencional que legitima a agricultura industrializada e o agronegócio, deve ser feita em conjunto com o campesinato e dele estar a serviço (CARVALHO, 2005b; GUZMÁN, 2005; PETERSEN; SOGLIO; CAPORAL, 2009).
Com a aplicação do conhecimento assim construído, pode-se alcançar a elevação da eficiência técnica e da produtividade da bovinocultura de leite dos camponeses, assim como de seus demais sistemas produtivos. "Os resultados alcançados nos projetos de PRV, corretamente conduzidos, têm mostrado que, contrariamente ao paradigma convencional, verifica-se um expressivo incremento da fertilidade do solo e da melhoria do meio ambiente, com consequente aumento da produção e dos níveis de nutrientes existentes no solo" (MACHADO, 2014, p. 186). Sua utilização garante a elevação da rentabilidade e da produtividade dos sistemas produtivos dos camponeses, assim como a redução do custo unitário e maior retorno econômico, além da produção de alimentos limpos. (MACHADO, 2010, 2014).
            Diante do que foi discutido neste artigo, pode-se afirmar que a estruturação dos sistemas de produção de leite do campesinato, com base no PRV e na cooperação, é um fator de contribuição para a permanência dos camponeses na atividade leiteira e para a sua resistência enquanto classe social. Isso se dá pelo fortalecimento da autonomia, pela redução dos laços de dependência com o mercado, pelo desenvolvimento e fortalecimento de uma base de recursos autocontrolada e autogerenciada, que é proporcionada e, ao mesmo tempo, qualifica a coprodução com a natureza, privilegiando a estabilidade do manejo dos recursos naturais. A relação com o mercado, além de ser marcada por maior autonomia, pode garantir maior apropriação do sobretrabalho como resultado da redução de custos e do aumento da eficiência técnica e gerencial. Essas relações e processos fortalecem as possibilidades de sobrevivência e as perspectivas de futuro.
Não se pode, em hipótese alguma, perder a necessária dimensão de escala da produção agroecológica (MACHADO, 2014). É necessário produzir alimentos de qualidade, a baixos preços e em quantidades suficientes para alimentar as populações rurais e urbanas, o que somente pode se dar com a produção agroecológica massiva. Para que se logre alcançar esse objetivo, assim com o desenvolvimento econômico, social e organizativo, a cooperação vertical é um caminho necessário aos camponeses, viabilizando a atuação conjunta para o controle da produção, do beneficiamento e da comercialização do leite vindo de unidades individuais e coletivas de produção.
            A viabilização desses processos passa pela necessidade de conseguir, mediante o enfrentamento às classes dominantes e aos seus representantes, que sejam implantadas políticas públicas pautadas por uma efetiva intervenção estatal com vistas à garantia de mercados, de preços mínimos, de capacitação, de eficiência técnica e de estruturação produtiva e econômica. O crédito, a assessoria técnica e a garantia de comercialização devem estar orientados para a agroecologia, para a estruturação das unidades camponesas e de seus empreendimentos cooperados de agroindustrialização. A produção agroecológica, assim fomentada, em particular a produção de leite cooperada em PRV, poderá proporcionar escalas de produção e rentabilidade por área que garantam a geração de renda às famílias camponesas e o fortalecimento desses empreendimentos, em consequência da proteção econômica estatal e da apropriação dos resultados do trabalho. As transformações geradas a partir daí terão impactos positivos sobre a geração de empregos no meio rural, contribuindo para reduzir o êxodo de jovens. Além disso, tornarão possível a disponibilização massiva de um alimento essencial, com elevada qualidade e a preços reduzidos.
            Finalmente, é essencial dizer que a condição primeira para a existência do campesinato é o acesso à terra, sem o qual nenhuma realização é possível. Isso faz com que, em um país com a estrutura fundiária e a concentração de renda vistas no Brasil, a Reforma Agrária seja uma política de Estado extremamente necessária e urgente.
















REFERÊNCIAS
ALTAFIN, I. et al. Produção familiar de leite no Brasil: um estudo sobre os assentamentos de reforma agrária no município de Unaí (MG). Revista UNI, Imperatriz-MA, ano 1, nº 1, p. 31-49, jan./jul. 2011.
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[1] Estabelecimentos rurais em posse de famílias camponesas.
[2] O agronegócio é "a articulação técnica, política e econômica dos elos representados pelos segmentos produtivos de insumos para a agricultura, do mercado de trabalho e de produção agrícola, bem como as etapas de armazenagem, processamento e distribuição dos produtos agrícolas, agora articulados pelo capital financeiro em escala internacional, [...] a fase atual de expansão capitalista da agricultura subordina diretamente a exploração da natureza e da força de trabalho no campo à dinâmica determinada pela expansão do capital financeiro em nível internacional" (CALDART, 2012, p. 76-77). O agronegócio está materializado no latifúndio moderno, com seus os monocultivos de larga escala, mormente para exportação, utilização de maquinário pesado, biotecnologia (sobretudo transgenia) e grande intensidade de fertilizantes de síntese química e agrotóxicos. É uma agricultura que recebe pesados subsídios estatais, que dispensa força de trabalho e que, mais uma vez, em expansão territorial, pressiona e expulsa camponeses (OLIVEIRA; STEDILE, 2005; MARTINS, 2012; MACHADO, 2014).
[3] Conjunto de recursos disponíveis para os processos produtivos e reprodutivos dos camponeses: recursos naturais, instrumentos de trabalho, máquinas e equipamentos, animais, insumos, infraestrutura e outros bens e serviços, recursos monetários e financeiros e conhecimentos (PLOEG, 2008)
[4] "[...] diz respeito à interação e transformação mútua constantes entre o homem e a natureza viva" (PLOEG, 2008, p. 40)
[5] "Un agroecosistema es un sitio de producción agricola, por ejemplo una granja, visto como un Ecosistema. El concepto de agroecosistema ofrece un marco de referencia para analizar sistemas de producción de alimentos en su totalidad, incluyendo el complejo conjunto de entradas y salidas y las interacciones entre sus partes"(GLIESSMAN, 2002).
[6] "[...] relativamente à composição quantitativa da base de recursos, a mão de obra será relativamente abundante, enquanto os objetos de trabalho (terras, animais, etc.) serão relativamente escassos. Combinado com as características anteriores (orientação para a produção e crescimento do máximo de valor agregado possível e base de recursos disponível por unidade de produção e consumo, quase sempre, limitada) estes aspecto sugere que a produção camponesa é por tendência intensiva (isto é, a produção por objeto de trabalho será relativamente elevada) e que a trajetória de desenvolvimento será determinada por um processo constante de intensificação baseada no trabalho. [...] a intensificação implica um aumento firme mas continuado da produção por objeto de trabalho. Ou seja, a produção por hectare de terra e/ou animal (e/ou por árvore) é aumentada. Em termos técnicos, esse aumento do rendimento deve-se ao uso de mais fatores de produção e insumos por objeto de trabalho, ou ao melhoramento da eficiência técnica. A chave para o aumento do rendimento é a quantidade e qualidade de trabalho. Os recursos e o processo de produção são melhorados através de investimentos no trabalho e na criação, muitas vezes demorada, de novos e melhores recursos. Mais rendimento resulta em receitas mais elevadas, o que por sua vez compensa o aumento dos insumos de trabalho" (PLOEG, 2008, p. 61 e 64).

[7] O sobretrabalho do camponês, materializado em seus produtos, é transferido, apropriado em sua relação com o mercado capitalista, mediante o recebimento de preços a um nível muito mais baixo daquele correspondente ao seu trabalho total. Assim, ocorre um permanente processo de extração de mais-valia, o que faz do camponês, igualmente, mas distintamente do assalariado, um trabalhador para o capital. Às alterações negativas em suas condições de vida, de sobrevivência, os camponeses reagem com a elevação do seu esforço produtivo, o que possibilita uma crescente transferência de riqueza, pela extração de mais-valia. O sistema capitalista determina, assim, a exploração do campesinato, subordinando-o à sua lógica.  O limite da intensificação do sobretrabalho seria, então, o trabalho necessário à reprodução. Porém, como resultado da intensa exploração por parte do latifúndio, dos atravessadores e da indústria, sempre garantida pelo Estado, pode-se observar em muitas ocasiões na história brasileira, e ainda hoje, que a instabilidade ameaça a autonomia dos camponeses e compromete a estabilidade dessas famílias. Nessas situações de precariedade, mesmo esse limite não existe, sendo comprometidas as condições mínimas de sobrevivência e, tanto mais, de sua existência digna (CARVALHO, 2005b; WANDERLEY, 1985, 1996).

[8] As características do modo camponês de fazer agricultura estão presentes em graus variados nos agricultores familiares, o que permite falar-se em graus de camponeidade (GUZMÁN, 2005, p. 82; PLOEG, 2008, p. 53), que dizem respeito ao nível com que os mecanismos de produção e reprodução estão mais próximos ou mais distantes da lógica camponesa. 

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