A Utopia Camponesa - Octávio Ianni

A UTOPIA CAMPONESA[1]

           

Octávio Ianni[2]


Eu intitulei a minha comunicação de “A Utopia Camponesa”. [3]

A minha idéia neste trabalho é fazer uma reflexão sobre a questão camponesa, tendo em conta compreender por que o campesinato que poucas vezes chega ao poder, ou mais freqüentemente ele aparece co­mo um elemento na composição do poder, quando tem algum sucesso, mas mais freqüentemente o campesinato que esta presente nas lutas sociais é deslocado dos sistemas de poder. Isto é, é um paradoxo, parece o fato de que o campesinato está presente na história nos países europeus, nos países latino-americanos -  para mencionar casos que talvez eu conheça um pouco melhor -  e, no entanto, ele não chega a influenciar o poder substantivamente. Ao contrário, ele sempre é deslocado, subordinado ou simplesmente, fica fora do poder. Isso acontece, por exemplo, na Itália com a unificação italiana; isso acontece na Alemanha com a unificação alemã e acontece em vários momentos, em vários países. É claro que, na França, o campesinato que vinha fazendo lutas notáveis nos séculos XVII e XVIII e que está presente no que seria a Revolução Francesa, nos seus desdobramentos, conquista alguma coisa. Mas conquista no nível de camponês, de terra e não chega a estar presente na construção do Estado. Essa questão que está no debate, que é bastante óbvia, continua no presente. Quer dizer, uma continuidade do campesinato nas lutas sociais, nas mais diferentes situações e, no entanto, a presença dele no poder é mínima, quando acontece ou, em geral, é nula. As reivindicações do campesinato são reivindicações que tem a ver com as suas condições de vida e trabalho. O campesinato, em geral, está preocupado com a terra, com as condições de trabalho, com a conquista da terra, a reconquista da ter­ra, a preservação da terra. E junto com isto está preocupado com o problema da produção e da apropriação do produto do trabalho. Nesse contexto, é claro, entra o problema do ser ou não ser proletariado, deixar-se ou não se deixar levar pelas forças sociais abrangentes que estão impondo, que estão instituindo realidades novas. De modo que as reivindicações - as mais visíveis, as mais evidentes e as mais reiteradas – é que parecem ter a ver com as condições estritas do próprio campesinato. Ou seja, são claras as situações nas quais o campesinato pode ser apresentado como uma categoria que esta pensando a Nação, o Estado nacional, que esta questionando assumidamente o poder nacional.

Eu acho que aí esta um paradoxo e muito da controvérsia política e teórica sobre o campesinato tem a ver com isso. Daí autores freqüentemente afirmaram que o campesinato é uma categoria pouco politizada, pré-política, há um certo primitivismo político nas lutas dos camponeses. E, classicamente, como se sabe, se atribui a condição de “povos sem história”, de grupos e nacionalidades que não têm viabilidade histórica, em certas situações. Mais do que isso, freqüentemente, se afirma o campesinato como sendo contra-revolucionário, devido ao caráter das suas reivindicações...

Eu vou tentar sintetizar a minha idéia neste trabalho: é fazer uma proposta sobre o que poderia ser a utopia camponesa. Isto é, em lugar de pensar o camponês como classe, em lugar de pensar o camponês por suas reivindicações econômicas, em lugar de pensar se o camponês tem ou não viabilidade histórica, eu quero pro­por para o nosso debate, para trocar idéias, que o que há nas lutas camponesas que permitiria chegarmos à idéia de uma utopia camponesa e de como essa utopia têm a ver com a História, têm a ver com a sociedade nacional. E, então, o elemento utópico que em lugar de ser uma constatação, através da qual nós vamos descartar o campesinato como uma categoria histórica, o elemento utópico, a meu ver, pode ser uma dimensão através da qual é possível resgatar o campesinato enquanto história. Não têm maiores pretensões do que esta, fazer um jogo com as leituras que nós fazemos, com os debates que nós fazemos.

Então, a minha proposta inicial é de que o campesinato está presente na História, bastante. E, a rigor, se pode dizer que ele esta fortemente presente nas revoluções. Eu diria para sintetizar que o campesinato esta presente nas duas revoluções fundamentais da história da sociedade burguesa: na revolução burguesa e na revolução socialista. Às vezes, de uma maneira direta, imediata, como uma das forças sociais preponderantes, às vezes, como uma força entre outras, não necessariamente a principal ou a preponderante, às vezes, como uma categoria que aparece na preparação da revolução. Todos sabemos que a Revolução Francesa tem muito a ver com as lutas dos camponeses do século XVIII. Isto é, as lutas dos camponeses faziam parte de uma crise do Estado Absolutista e da ordem semi-feudal que predominava, na época, ainda e que entra como um ingrediente fundamental na revolução. (Sem deixar de lembrar que o campesinato esta presente na revolução, o campesinato conquista na revolução alguns direitos e continua na história, às vezes, mudando o significado da sua atuação).

Pode-se dizer, portanto, que o campesinato está presente duas vezes na história, de uma maneira notável. Na revolução burguesa, na medida em que ele está lutando para preservar as suas terras ou para conquistar terras, isto é, para redefinir a sua situação em face das transformações da sociedade. O que ocorre com a revolução burguesa é uma revolução agrária que transforma as propriedades em propriedades privadas, há uma monopolização da terra, uma história muito conhecida e, então, os camponeses sejam posseiros, sejam aqueles que vivem em terras comunais ou terras de Igreja, o que seja, eles são levados a lutar pela preservação das terras ou pela conquista das terras. Junto com isso, entram os dízimos e outras reivindicações. Mas junto com isso entra também o problema de lutar pela não-proletarização, isto é, resistindo à proletarização. Na verdade, a revolução burguesa é uma revolução que provoca uma revolução agrária em alguma dimensão. É essa revolução agrária que tem a ver com a produção de mercadorias, com a proletarização, com a transformação da terra em propriedade privada é uma revolução que atinge diretamente o campesinato e o campesinato reage contra certas injunções da revolução francesa. E é isso que muitas vezes leva historiadores e cientistas sociais a ver no campesinato uma categoria conservadora, reacionária, contra-revolucionaria.

Num segundo momento, o campesinato entra na revolução socialista. Ele está presente em praticamente todas as revoluções socialistas e a sua luta continua sendo para conquistar ou preservar terras, implicando outra vez em preservar ou garantir condições de produção e apropriação, continuidade de um certo tipo de apropriação, a continuidade de um certo tipo de organização comunitária de trabalho. Mesmo nos casos em que o campesinato realiza, até explicitamente, uma aliança com outras categorias sociais, como o proletariado, por exemplo, na verdade, ele está preocupado era preservar ou em recriar certas condições de vida e de trabalho. E nisso existe o germe da utopia camponesa. E essa utopia camponesa, que tem sido tratada de várias maneiras, e freqüentemente de uma maneira negativa - isso está em Hobsbawn, está em autores brasileiros, está num debate sobre classe operária, partido político, movimento social - esta utopia pode ser um elemento dinâmico da história e não um elemento conservador ou reacionário ou contra-revolucionário. ­

Agora, por que o campesinato entra na revolução socialista, a despeito de ele não estar preocupado com o socialismo, com a conquista do Estado? Porque a revolução burguesa não resolveu a questão agrária, não resolveu a questão camponesa. Em geral, nos países em que a revolução socialista conta com a participação do campesinato, nesses países o que ocorreu é que a revolução burguesa ocorrida nesse caso não conseguiu definir ou redefinir a situação agrária de modo a equacionar satisfatoriamente o campesinato segundo certas reivindicações.

Não há dúvida de que o campesinato está presente na revolução soviética, na revolução chinesa, está presente em varias revoluções de cunho socialista. Até dá para dizer aqui e repor o problema clássico: --- não que a revolução socialista se realize em países agrários ou em países atrasados, e que a revolução socialista parece que se realiza em condições tal­vez um pouco mais imediatas nos países onde a revolução burguesa não consegue resolver alguns dos problemas que poderiam ser resolvidos pela burguesia e um deles, a própria questão camponesa.

Refletindo sobre isso, eu fiz umas anotações que eu vou ler para vocês e que de certo modo sintetizam uns parágrafos.

Na medida em que a revolução burguesa não provoca maiores transformações no mundo agrário, (ela) preserva ou recria um campesinato descontente. Aí está uma condição básica da força social que ele pode representar, isto é, ele (campesinato) se posiciona contra uma situação que não resolve as suas condições e essa luta camponesa contra a maneira pela qual a revolução burguesa encaminhou o problema agrário, essa luta acaba tendo significação local, regional ou nacional. Nesse sentido, diria Barrington Moore, é que “os camponeses têm fornecido a dinamite para por abaixo o velho edifício” (l). Nos países predominantemente agrários, o que pode significar que a revolução burguesa adquiriu aí determinado caráter, nesses países, sem as revoltas camponesas o radicalismo urbano não tem sido, afinal, capaz de realizar transformações sociais revolucionarias” (2). Isto é, em certos casos, a presença camponesa fundamental, como na revolução soviética. “Se a questão agrária, diz Trotsky, herança da barbárie, da antiga história russa, tivesse sido resolvida pela burguesia, caso pudesse ter recebido uma solução, o proletariado russo não teria, jamais, conseguido subir ao poder em 1917” (3). É claro que uma tese discutível, mas é uma tese muito forte. Quer dizer, o caráter da revolução burguesa na Rússia Tzarista foi tal que o campesinato não teve algumas das suas reivindicações resolvidas e, então, ele se transforma numa espécie de aliado natural das outras categorias sociais, em especial do proletariado.

No século XX, aos poucos, descobrem-se as dimensões revolucionárias dos movimentos sociais que ocorrem no campo. Isso aconteceu na China e, então, vem uma colocação famosa do Mao Tse-tung que de 1927, de uma enquete que ele fez no meio agrário, onde ele diz, fazendo uma polêmica com os soviéticos e também com os chineses que tinham outras posições: “É preciso retificar imediatamente todos os comentários contra o movimento camponês e corrigir, o quanto antes, as medidas erradas que as autoridades revolucionárias tomavam em relação a ele. Somente assim se pode contribuir de algum modo para o futuro da revolução, pois o atual ascenso do movimento camponês é um acontecimento grandioso. Muito em breve, centenas de milhões de camponeses, a partir das províncias do Centro, do Sul e do Norte da China, vão se levantar como uma tempestade, como um furacão de extraordinária violência, que nenhuma força, por mais poderosa, poderá deter. Vencerão todos os obstáculos e avançarão rapidamente pelo caminho da libertação. Todos os imperialismos, caudilhos militares, funcionários corruptos, tiranos locais e shenshi perversos serão sepultados. Todos os partidos e grupos revolucionários, todos os camaradas revolucionários serão posto à. prova perante os camponeses e terão de decidir se os aceitam ou rejeitam”(4). No Vietnam, o campesinato está presente. Ho Chi Minh lembra: “Para o sucesso da resistência e da reconstrução nacional, para obter efetivamente a independência e a unidade nacionais, é absolutamente necessário apoiarmo-nos no campesinato”(5). Em vários momentos, em várias situações o campesinato se torna uma força social importante, revolucionária, no contexto do movimento que.provoca a transição para o socialismo.

No caso da Nicarágua, isso também á evidente. O “Jaime Wheelock”, falando sobre a revolução da Nicarágua, lembra que “A insurreição de uma massa popular integrada por milhares e milhares de camponeses, pequenos produtores, médios produtores, pequenos comerciantes, pequenos artesãos, ou seja, uma República Popular, uma República de povo humilde” (6), em que o campesinato tem um papel muito importante, seja por sua participação direta, seja por sua presença no cenário da sociedade nacional. É claro que se podem discutir esses casos, assim como se podem agregar outros exemplos. Mas eu acho que á válido colocar aqui - reiterando a proposta - de que como a burguesia não resolve nem a questão agrária, nem a questão nacional, isto é, a maneira pela qual os vários grupos sociais se representam na sociedade no Estado nacional, o campesinato se constitui numa força social básica, tanto para reformar como para revolucionar a pirâmide social, como fala Hobsbawn.

Essa colocação nos permite repor a questão inicial. Afinal, o que querem os camponeses? O que está em questão? O campesinato não quer o poder. O campesinato não está propondo a conquista do Estado nacional. Esse é um problema de interesse que não é fácil resolver. Eu não tenho uma resposta, mas como é que se explica que o campesinato tem uma presença tão forte, a despeito de não estar direta e explicitamente lutando pela conquista do poder. E aqui cabe colocar a pergunta mais ou menos elementar: afinal, que são os camponeses? Os camponeses não são uma categoria econômica. E é ilusório dizer que os camponeses podem ser uma categoria econômica e política ou podem ser uma categoria política e, então, o assunto está resolvido, porque são uma categoria política e passam a ser uma força revolucionária. O que é uma velha controvérsia. Muitos de nós estamos, às vezes ... o Dezoito Brumário, por­que lá Marx diz que o campesinato é como batata num saco, quer dizer, há situações nas quais o campesinato não chega a se articular politicamente. Ele é uma realidade econômica, mas não é uma classe política, porque não se assumiu, não se organizou. No entanto, esse campesinato que parece ser disperso, atomizado, que está vi­vendo as suas condições de vida e trabalho, esse campesinato é um fermento da história, é um ingrediente das lutas sociais. As suas lutas, as suas reivindicações entram no movimento da história. Então, se coloca o problema de que o campesinato, além de serem pequenos produtores, sitiantes, posseiros, colonos ou o que seja, além de lutarem pela terra, além de quererem a posse e uso da terra e uma certa apropriação do produto do trabalho, o campesinato representa um modo de vida, um modo de organizar a vida, uma cultura, uma visão da realidade, ele representa uma comunidade. E é o fato de que o campesinato constitui um modo de ser, uma comunidade, uma cultura, toda uma visão do trabalho, do produto do trabalho e da divisão do produto do trabalho é que faz do campesinato uma força relevante. Isto é, é que coloca o campesinato como uma categoria que mostra para a sociedade não simplesmente uma participação política, uma força, mas também um modo de ser. Aponta e reaponta continuamente uma outra forma de organizar a vida.

            Eu relembro para vocês o famoso diálogo de Marx com a Vera Zasúlich que tem sido registrado de várias maneiras, mas que põe um problema fundamental. É que Marx acaba embatucando diante da carta de Vera Zasúlich, porque ela põe a hipótese de que o campesinato na sua comunidade poderia ser resgatado ou preservado nu­ma ordem social diferente que não a burguesa. Marx que, em 1850/60, talvez teria dito que não, não têm saída, o campesinato está condenado, vai ser desbaratado pela revolução burguesa e pelo capitalismo, ele, nesse então, resolve pensar um pouco e diz, de fato, esse campesinato pode ser preservado. Eu registro assim esse fato:

            Não foi por acaso que Marx embatucou quando Vera Zasúlich lhe perguntou, em 1881, se havia possibilidade de que a comuna rural russa se desenvolvesse na via socialista; ou se, ao contrário, estava destinada a perecer com o desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Esse é um dos momentos mais intrigantes e bonitos da biografia intelectual de Marx. Escreveu vários rascunhos, buscando uma resposta que fosse também uma reflexão sobre as condições do desenvolvimento do capitalismo, e socialismo, naquele país. Naturalmente procurou informar-se melhor sobre o que estava o ocorrendo ali, nos anos recentes e em todo o século dezenove. Reconhecia que a expropriação do campesinato acompanhava o desenvolvimento capitalista na Inglaterra, França e outros paises. Mas julgou que esse não precisava ser o mesmo caminho na Rússia. Em certo passo da versão da carta que, afinal, enviou à sua correspondente, dizia: “Convenci-me de que esta comuna é o ponto de apoio da regeneração social na Rússia, mas para que possa funcionar como tal será preciso eliminar primeiramente as influências deletérias que a acossam por todos os lados e, em seguida, assegurar-lhe as condições normais para um desenvolvimento espontâneo” (7).
           
Ou seja, ele põe a possibilidade de que a comunidade camponesa russa possa ser preservada na outra ordem social, reconhecendo, como não poderia deixar de ser, que ela estava sendo desbaratada pela expansão do capitalismo. Eu acho que estas intuições de Marx põem o problema da utopia camponesa. Isto é, o modo de ser camponês e a luta do camponês por este modo de ser, que tem sido tratado por muitos intelectuais e políticos como sendo uma forma utópica, pretérita, condenada, sem história e que, portanto, não têm porque ser conservada, essa comunidade pode ser uma metáfora do futuro, pode ser uma proposta, uma indicação. Não que vá ser preservada nessa condição, é claro. Seria ridículo imaginar que fosse ser preservada na mesma situação, mas que poderia se reintegrar numa ordem social nacional, naturalmente organizada com base na propriedade socialista, e, então, essa comunidade em lugar de parecer anacrônica, passava a ser uma forma válida para a organização da vida e do trabalho.

Eu vejo, portanto, que essa correspondência de Marx re­põe o problema de que o campesinato não é simplesmente uma categoria econômica ou simplesmente uma categoria política ou política-econômica. O campesinato, na verdade, pode ser visto como uma proposta que, ao mesmo tempo, pode ser vista como uma proposta que é, ao mesmo tempo, social e cultural. E que o camponês, devido a sua longa história, devido a sedimentação de suas formas de vida e trabalho, devido ao desenvolvimento de sua língua ou dialeto, às vezes, religião, língua ou dialeto, freqüentemente tradições, histórias, façanhas, etc..., o campesinato tem um patrimônio cultural e uma forma de organizar a produção e a reprodução, a distribuição do produto do trabalho que podem ser sugestões sobre a maneira pela qual a sociedade no futuro poderia se organizar.

Na verdade, o movimento social camponês não se propõe à conquista do poder estatal, à organização da sociedade nacional, à hegemonia camponesa. Essas, talvez, sejam as tarefas do parti­do, pode ser a tarefa da classe operária associada com outras categorias sociais, inclusive o camponês. Mas isso não elimina nem reduz o significado revolucionário das muitas lutas que esse movi­mento camponês realiza. Em essência, o seu caráter radical está no obstáculo que representa à expansão do capitalismo, na afirmação do valor de uso sobre o valor de troca, sobre a mercadoria, enquanto tal, sobre o trabalho alienado, na resistência da transformação da terra em monopólio, na afirmação de um modo de vida e trabalho que tem evidentemente uma conotação comunitária. Uma organização em que a participação do todo é de outro tipo e em que a distribuição do produto material e espiritual é de outro tipo.

E, nesse sentido, há na comunidade camponesa ou nas for­mas camponesas de viver e trabalhar uma sugestão ou uma metáfora do que poderia ser o modo futuro de organizar a sociedade. E eu vejo nisso uma das forças, senão a força do movimento camponês. Eu vejo nisso que é a utopia camponesa a importância do campesinato como história.           

A luta do campesinato constitui um obstáculo ao desenvolvimento da ordem burguesa. Ao lutar pela terra e pela posse da terra e pelo uso da terra e o produto do seu trabalho a seu modo, ele está se pondo como um obstáculo à ordem burguesa. E, nesse sentido, eu diria que essa luta freqüentemente adquire conotação revolucionária, por duas razões: por uma lado, o camponês resiste à proletarização no campo e na cidade e isto é contrário ao funcionamento do mercado da força de trabalho, aos fluxos e refluxos do exército industrial de reserva, à subordinação real do trabalho ao capital. Por outro lado, a luta pela terra impede ou dificulta a monopolização da terra pelo capital, a sua transformação em propriedade mercantil, o desenvolvimento extensivo e intensivo do capitalismo na agricultura. Nessas duas perspectivas, o movimento camponês adquire dimensão nacional e põe em causa os interesses prevalecentes no Governo, no Estado.

Um dos componentes estruturais da ordem burguesa é a burguesia agrária. A burguesia agrária é freqüentemente um dos elementos do bloco do poder. A indústria agrícola. A produção de valor na agricultura. Na medida em que esse elemento da ordem burguesa que é o agrário, que é a terra, que é a produção de valor, de lucro, de mais-valia se vê bloqueado em seu funcionamento e expansão, nessa medida coloca-se em pauta um problema sério para a classe dominante, para a ordem burguesa, para o bloco de poder. E nesse nível que é constitutivo do mercado, da produção capitalista, da produção de valor é que a luta do camponês é adversa à ordem burguesa.


Mas o movimento camponês não se limita à luta pela ter­ra. Mesmo quando é essa a reivindicação principal, ele compreende outros ingredientes: a cultura, a religião, a língua ou dialeto, a raça ou etnia entram na formação e desenvolvimento das suas reivindicações e lutas. Mais do que isso. Pode-se dizer que a luta pela terra é sempre e ao mesmo tempo uma luta pela preservação, conquista ou reconquista de um modo de ser e de trabalho. Todo um conjunto de valores culturais entra em linha de conta como componente do modo de ser e viver do campesinato.

Por que o campesinato da Nicarágua entrou na revolução sandinista? Por que tinha uma proposta socialista? Por que tinha uma proposta anti-norte-americana ou, até se pode dizer, anti-somozista? Poderia ter um pouco, mas, na verdade, era um campesinato lascado secularmente como índio e como mestiço e que queria reafirmar a sua indianidade, a sua mestiçagem, com a sua cultura, o seu modo de ser. E esse campesinato, que têm também reivindicações econômicas, entra na luta revolucionária. Quer dizer, são várias as razões que estão metidas, embutidas na maneira pela qual se organiza o movimento social.

Acontece que toda opressão econômica é também opressão cultural e social, além de política. A terra não é um fato da natureza, mas é um produto material e espiritual do trabalho humano. As relações do camponês com a terra compreendem um intercâmbio social complexo que implica a cultura. Jamais se limita à produção de gêneros alimentícios, elementos de artesania, matérias-primas para a satisfação das necessidades - alimento, etc. Muito mais do que isso, a relação do camponês com a terra põe em causa também a sua vida espiritual. A noite e o dia, a chuva e o sol, a estação de plantio e a da colheita, o trabalho de alguns e o mutirão, a festa e o canto, a estória e a lenda, a façanha e a inventiva, a mentira camponesa, o humorismo camponês, são muitas as dimensões sociais e culturais que se criam e recriam na relação do camponês com a sua terra, com o seu lugar.

Muitas vezes, é na cultura camponesa que se encontra alguns elementos fundamentais da sua capacidade de luta. A sua língua ou dialeto, religião, valores culturais, histórias, produções musicais, literárias e outras entram na composição das suas condições de vida e trabalho. Expressam a sua visão do mundo. Na luta pela terra pode haver conotações culturais importantes, decisivas, sem as quais seria impossível compreender a força das suas reivindicações econômicas e políticas.

            A comunidade camponesa é o universo social, econômico, político e cultural que expressa e funda o modo ser do camponês, a singularidade do seu movimento social. E é precisamente aí que está a sua força. O caráter revolucionário desse movimento social não advém de um posicionamento explícito, frontal, contra o latifúndio, fazenda, plantação, empresa, mercado, dinheiro, capital, governo, rei, rainha, general, patriarca, presidente, supremo, esta­do. O seu caráter revolucionário está na afirmação e reafirmação da comunidade, da comunidade como uma totalidade social, política, econômica e cultural. A sua radicalidade está na desesperada defesa das suas condições de vida e trabalho. “Os camponeses levantam-se em armas para corrigir males. Mas as injustiças contra as quais se rebelam não são, por sua vez, manifestações locais de grandes perturbações sociais. Por isso a rebelião converte-se logo em revolução e os movimentos de massas transformam a estrutura social como um todo. A própria sociedade converte-se em campo de batalha e, quando a guerra termina, a sociedade estará mudada; e, com ela, os camponeses. Assim, a função do campesinato é essencialmente trágica: seus esforços para eliminar o pesado presente somente desembocam em um futuro mais amplo e incerto. Não obstante, ainda que trágico, está pleno de esperança” (8). Há uma recôndita dialética comunidade-sociedade no movimento dessa história. “Em geral, as revoltas camponesas não se dirigem contra uma classe, mas contra uma sociedade de classes. Por isso o desespero, do qual surge a crueldade, sempre marcou de forma particular as revoltas camponesas. Não é o “fanático” que se revolta para defender a sua propriedade, como tendemos a crer. É sobretudo a revolta do “profano e do “bárbaro” contra o “sagrado” e a “civilização” do “capital” (9).


O movimento social camponês nega a ordem burguesa, as forças do mercado, as tendências predominantes das relações capitalistas de produção. Em geral, a radicalidade desse movimento está em que implica em outro arranjo da vida e trabalho. Em sua prática, padrões, valores, ideais, ele se opõe aos princípios do mercado, ao predomínio da mercadoria, lucro, mais-valia. Sempre compreende um arranjo das relações sociais no qual se reduz, ou dissipa, a expropriação, o desemprego, a miséria, a alienação.

A comunidade camponesa pode ser utopia construída pela invenção do passado. Pode ser a quimera de algo impossível no presente conformado pela ordem burguesa. Uma fantasia alheia às leis e determinações que governam as forças produtivas e as relações de produção no capitalismo. Mas pode ser uma fabulação do futuro. Para a maioria dos que são inconformados com o presente, que não concordam com a ordem burguesa, a utopia da comunidade é uma das possibilidades do futuro. Dentre as utopias criadas pela crítica da sociedade burguesa, coloca-se a da comunidade, uma ordem social transparente. Esse é, provavelmente, o significado maior do pro­testo desesperado e trágico do movimento social camponês.

Muito obrigado.

Literatura citada

(1)    Barrington Moore Jr. Social Origins of Dictatorship and Democracy (Lord and Peasant in the Making of the Modern World), Beacon Press, Boston, 1966, p. 480.

(2)    Theda Skocpol, States and Social Revolutions (A Comparative Analysis of France, Rusia and China), Cambridge University Press, Cambridge, 1984, p.113.

(3)    Leon Trotsky. A História da Rev. Russa, 3 vol.. trad. de E. Huggins, Edit. Saga, RJ, 67, 1º  vol., p.62.

(4)    Mao Tse-tung, Escritos Sociológicos y Culturales, segunda edição, Edito­rial Laia, Barcelona, 1977, pp. 24-25. Citação do “Informe sobre uma pesquisa do movimento camponês em Hunan”, de 1927. Aproveito a tradução de Daniel Fonseca em Mao Tse-tung (organizador Eder Sader), Editora Ático, São Paulo, 1982.

(5)    Ho Chi Minh, “Aos Quadros Camponeses”, texto de 1949, publicado em Escritos 1 (1920/1954), tradução de Francisco Correia, Edições Maria da Ponte, Lisboa (?), 1975, pp. 75/76; citação da p. 75.

(6) Jaime Wheelock Román, em entrevista a Frei Beto, Nicarágua Livre:  O primeiro passo, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980, p. 61.
(7) Karl Marx a Vera Zasúlich, carta de Londres, 8 de março de 1881, publicada em: K. Marx e F. Engels, El Povenir de la Comuna Rural Russa, tradução de Félix Blanco, Cuadernos de Pasado y Presente, nº 90, México, 1980, pp. 60-61; citação da p.61.

(8) Eric Wolf, Las Luchas Campesinas del Siglo  XX, tradução de Roberto Reyes Mazzoni, Siglo Veintiuno Editores, México, 1972, p. 409.

(9) Kostas Vergopoulos, “Capitalisme Difforme (le cas de l’agriculture dans le capitalisme)”, publicado por Samir Amin  e Kostas Vergopoulos, La Question Paysanne et le Capitalisme, Editions Anthropor, Paris, terceira edição, 1980, pp. 61-295; citação da p. 223.



[1] Os textos não foram revisados pelos autores.
[2] À época da palestra aqui registrada era prof. da PUC/SP. Atualmente (março de 2004) é Professor Emérito da Unicamp, onde é titular do Departamento de Sociologia do IFCH; é autor, entre outros livros, de O Colapso do Populismo no Brasil, Estado e Planejamento Econômico no Brasil, Sociologia da Sociologia Latino-Americana e A Luta pela Terra.
[3] Reprodução autorizada pelo Autor para as bases do Movimento de Pequenos Agricultores - MPA a partir de consulta pessoal de Horacio Martins de Carvalho em 22 de março de 2004.

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